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Âncora 4

Revista Select
VOL. 11, Nº. 54, JUNHO/ JULHO/ AGOSTO 2022


BRASÍLIA DELIRANTE
Mateus Nunes, 2022


Na crônica “Nos primeiros começos de Brasília”, de Clarice Lispector, publicada em 1970, a autora discorre sobre os impactos dos princípios que regiam a construção daquela cidade, assemelhada a um espanto, a uma simplificação final de ruínas, a uma nova proposta de linha do horizonte. Brasília não foi só um marco espacial e político, mas um experimento sobre o controle do tempo, sobre a deliberação de uma origem artificial, sobre a possibilidade de construir um início. A gênese de um espaço e de um tempo acarreta, portanto, uma nova cultura: Lispector atesta que “Brasília não tem o homem de Brasília”. Quando a crônica foi publicada no Jornal do Brasil, a então nova capital do país havia recém completado 10 anos desde sua inauguração. Quais seriam os limites do gesto humano, já que ele pode manipular o espaço, determinar temporalidades e incitar culturas indefinidas?
 
A escritora cogita que Brasília seja, talvez, constituída da mesma matéria dos sonhos, uma vez que a criação arbitrária de algo tão grandioso habitava o campo do mistério, e não da compreensão. Da mesma forma vertiginosa, Rem Koolhaas entende a construção de Nova York, em seu livro “Nova York Delirante: Um Manifesto Retroativo para Manhattan”, originalmente publicado em 1978.
 
“Um dia abri os olhos e era Brasília”, excerto do texto supracitado de Lispector, batiza a exposição coletiva inaugurada no último dia 5/8 no Museu de Arte de Brasília, apresentando trabalhos dos brasilienses Cecília Lima, Gustavo Silvamaral e João Trevisan. Curada por Ana Avelar, com assistência de Renata Reis, a exposição reflete sobre a leitura atual de artistas de uma nova geração sobre a capital federal, versando sobre sua obsolescência ou a contradição do envelhecimento de uma cidade que sempre foi vista como nova. Segundo o texto curatorial, os artistas “chamam atenção para uma cidade contraditória, mas repleta de possibilidades urbanas, naturais, sensíveis e de sociabilidades transversais”. 
 
Reler Brasília
Em tempos de revisão sistemática das estruturas – discussão muito cara ao próprio pensamento moderno que fundamentou a construção da cidade — Lima, Silvamaral e Trevisan argumentam, em diferentes plataformas, como as noções de novidade e de ruína se prestam a analisar a cidade. Essas reflexões abarcam não somente o espaço ou o corpo urbano de Brasília, mas suas reverberações – e indefinições — sociais, identitárias, históricas e artísticas. De forma segura e singular, os artistas discutem as particularidades de abordar a história de algo novo, a escrita de uma biografia fragmentada ou do fragmento de uma biografia. Por consequência, os trabalhos questionam noções impostas pelo modernismo — como o espaço modular, a industrialização e a efemeridade de ícones que foram construídos a partir de princípios de monumentalidade e perenidade.
 
A modernização de um país sul-americano recai em uma nova onda de absorção de matrizes de pensamento eurocêntricas, encenando uma reiteração de princípios colonizadores. Quanto do que foi proposto para Brasília era de fato um reflexo da sociedade brasileira? O aspecto orgânico das relações sociais com o espaço responde de que forma à determinação precisa de espaços e funções? A construção desses limites em um país como o Brasil não conjecturaria a posterior extrapolação de seus campos tão sólidos? Como lidar com um sistema estético híbrido, cujos princípios centrais foram importados, mas adaptados ao modo moderno brasileiro? De que forma se relacionar com um mercado de arte cujo eixo dinâmico se encontra entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, embora a geopolítica afirme que a capital do país é Brasília? Poderia um centro, gestado para ser centro, se comportar como periferia no panorama artístico brasileiro? Como reage a cidade-síntese do modernismo brasileiro em um ano-marco para o pensamento moderno no Brasil? Essas são algumas das questões que ressoam a partir da comunicação dos trabalhos com o recorte curatorial.

Estradas e carrinhos
A artista Cecília Lima apresenta a série Caminhões, composta por desenhos e objetos que se debruçam sobre os fluxos que atravessam e compõem Brasília, sobretudo na centralidade modernista da locomoção rodoviária. A artista explora, em sua produção, as relações de fluxos em ocupações espaciais, em suas conexões com a arquitetura e em provocativos jogos de escala. Em uma cidade onde os sistemas de transporte público são problemáticos — já que esta não foi pensada para abarcar esse tipo de mobilidade coletiva —, Lima desenvolve seus desenhos em encáustica sobre lâminas de pedra durante viagens de carro ou ônibus pela cidade, refletindo a irregularidade do solo e a movimentação dos veículos na vibração do traço.
 
Seus objetos, compostos por uma assemblage lúdica e colecionista, atritam com a noção de pureza das formas modernas que orientaram Brasília ao usar pedaços de madeira e elementos considerados dejetos de construção civil ou lixo. Apresentados em uma instalação que pode ser lida como uma minicidade que autorreferencia a própria metrópole, os objetos da artista remetem à imaginação infantil diante de cidade artificial lidando com seus brinquedos e brincadeiras — e até mesmo compondo seus sistemas estéticos —, com certa vizinhança dos objetos de Julio Villani, das pinturas e vídeos de Francis Alÿs que retratam crianças que se divertem em lugares hostis, e do fazer de brinquedos populares pelo Brasil com madeira, tinta e arame, por exemplo. 

Efeméride amarela
Na instalação Balduíno, Gustavo Silvamaral discute a fragilidade e a obsolescência de ícones, a noção de perenidade na compreensão moderna de monumento, e os fluxos migratórios para a construção de Brasília a partir do final da década de 1950. O artista dedica a obra a seu avô, candango, termo utilizado para referir-se a operários nordestinos que migraram para a construção da nova capital do Brasil em busca de sonhos de sorte e trabalho. A instalação é composta por infláveis de plástico com formas alusivas a ícones brasilienses, como as colunas do Palácio da Alvorada e as paredes de cobogós presentes nos prédios do Plano Piloto, satirizando as noções de efemeridade de materiais e questionando uma “modernidade insustentável”, como escreve Silvamaral.

Elemento decisivo na instalação é a luz amarelada, obtida por meio da adesivagem em película translúcida amarela das grandes janelas da principal parede da sala expositiva. Dessa forma, a luz natural transforma-se em um filtro que altera a percepção cromática do espectador, em uma operação sensorial consistentemente feita pelo artista em obras anteriores, em que utiliza o mesmo tom de amarelo. Aborda questões como a fenomenologia do espaço, recepção óptica, relações entre luz e cor e questionamentos sobre espaços museológicos, apresentando semelhanças com os objetos relacionais de Lygia Clark, as instalações luminosas de James Turrell e Alfredo Jaar e as obras cromáticas de Gisela Colon e Anne Appleby. Os ícones infláveis nos provocam a refletir sobre Brasília como representação, sobre a artificialização de algo natural, e sobre como perspectivas de pensamento podem ser determinantes para a percepção das coisas.
 
O gesto e o espaço
João Trevisan exibe a instalação Corpos Que Se Estendem, conjunto de  dormentes dispostos sobre o chão, peças de madeira maciça que, em algum momento, apoiaram os trilhos das ferrovias de Brasília. Todos os dormentes, embora tenham as mesmas dimensões e possam ser confundidos entre si, são corpos individuais: portam histórias singulares, em suas marcas, queimaduras e fissuras, lidas como cicatrizes e sintomas da passagem do tempo, respeitadas pelo artista nos gestos de deitá-los sobre o chão em uma espécie de rearranjo afetivo. Dessa forma, ao mesmo tempo em que se refere à geometria e à abstração, concentra-se sobre a matéria viva, sobre a individualidade dos corpos e na sensibilidade da relação de elementos que se estendem na paisagem.

A instalação do artista se relaciona com a marcante linha do horizonte de Brasília, por motivos tanto naturais quanto artificiais: topograficamente, encontra-se em um planalto, dispondo de uma silhueta dessa paisagem incomum; urbanisticamente, seguindo as noções da espacialidade moderna, reitera um horizonte infinito e sempre possível. Põe-se, simultaneamente, como robusto marco que irrompe do solo e como invisível escala de compreensão do espaço modular. O trabalho do artista abraça uma ambiguidade inerente à sensibilidade e ao abstracionismo, já que cada um dos cinco módulos, por mais que sejam lidos como iguais, são diferentes – não só entre si, mas entre os próprios corpos que compõem cada um deles. A justaposição e a proximidade dos blocos vazios, como que estabelecendo um novo eixo na cidade, reforçam seus significados independentes.
 
Ao exibir módulos cartesianos cujas arestas de base são iguais, Trevisan apresenta um simulacro da retícula de Brasília, ao mesmo tempo em que reitera que esse espaço que se amplifica infinitamente é formado por corpos, em uma compreensão expandida do tempo e do espaço. Embora a instalação possa se conectar com o urbanismo modernista, com os trabalhos de Donald Judd em Marfa e com os princípios espaciais e a “álgebra sobre um corpo” de Stefan Banach, a obra do artista é centrada no gesto silencioso e atento, na repetição disciplinada e no respeito à individualidade dos corpos que são dispostos sobre a paisagem, em contínua posição de escuta.

Âncora 1

VACILANTES [1]
Yana Tamayo, 2021











Em 2018, quando conheci Cecília Lima, a artista tinha 21 anos. Era a mais jovem participante do último grupo de Laboratórios da Nave [2]. Nestes três anos, por acaso e privilégio, pude estar próxima de sua pesquisa acompanhando movimentos, derivas, escolhas, perguntas, experimentações e sedimentações em sua produção. O trabalho apresentado em sua segunda individual resulta dos desdobramentos da segunda edição da residência artística Hospitalidade/Casa Aberta, realizada na cidade de Olhos D’Água-GO em junho de 2019.

Tais desdobramentos são narrados a partir da experiência de uma temporalidade atipicamente estendida pela contingência mundial que nos colocou diante de uma pandemia e de um hiato concreto diante da vida. Seguramente, é um privilégio estarmos vivas para apresentar a materialização de um processo de criação artística desenvolvida durante este período.

Uma residência artística, em geral, propõe a seus participantes um espaço de suspensão do habitual a fim de produzir intercâmbios entre diferentes agentes, pesquisas e, muitas vezes, a produção de novas obras. Neste caso, Hospitalidade/Casa Aberta trata de uma proposta com duração de duas semanas de imersão na casa da artista Suyan de Mattos situada no Estado de Goiás, num pequeno município muito próximo a Brasília: Olhos D’Água.

Habitar este espaço tão próximo e ao mesmo tempo tão distante certamente nos aproxima da ideia de suspensão citada anteriormente. A proximidade geográfica não nos alerta sobre uma distância que talvez seja um marcador importante de experiência naquele espaço e que tenciona nossas formas de experimentar o tempo hoje, diante do excesso informacional que marca a cultura contemporânea. Quase não há sinal de telefonia celular, logo, só temos acesso à comunicação quando há sinal de Internet disponível.

Os trabalhos apresentados por Cecília no térreo do Museu Nacional da República resultam da experimentação insistente da artista na lida com os materiais coletados em percursos realizados em Olhos D’Água e ao longo do período que sucedeu a residência. A partir de intervenções mínimas sobre os materiais encontrados, estas composições buscam abordar as possibilidades poéticas inerentes ao fragmento, assim como também nos convidam a atentar para o ruído, as assimetrias, o silêncio, o equilíbrio, todas estas formas e coisas que jogam com nossa memória material de certa configuração de mundo.

Os trabalhos de Cecília Lima nos convidam a atentar para o mínimo, lento e frágil arranjo entre as coisas. Deslocamentos à pé, de ônibus e de carro pela cidade, além da observação cotidiana da arquitetura, suas construções e abandonos, fazem parte do processo de pesquisa desta artista que recolhe pequenos indícios materiais, espécies de micro testemunhas dos fluxos implicados nas transformações do espaço urbano. Ao deter seu olhar sobre pequenos objetos/dejetos pousados no chão, Cecília acolhe o pequeno e inútil como elemento linguístico, formando novas frases, evocando novos sentidos para eles, evidenciando seu caráter avulso, matéria já despojada de sua referência de totalidade. Poderíamos pensá-los, dessa forma, como pedaços que carregam consigo memórias de movimento e transformação, apresentando-se a nós em nova composição como uma espécie de Cosmografia [3].

Se tomarmos essa ideia emprestada e, se pudermos ir ainda mais longe ao questionar a ideia de total opacidade da matéria considerada inerte, podemos observar como todo este movimento de produção e descarte de fragmentos materiais afeta e modifica a vida dos seres sobre a Terra. Uma ideia de “matéria vibrante” [4] poderia ressoar em nossa sensibilidade caso nos disponibilizássemos a perceber de maneira menos segregada o que entendemos como mundo vivo e não-vivo. Os restos de madeira deixados na frente de uma marcenaria em que posso neles tropeçar, os pregos enferrujados que furam o pneu do carro na estrada, os cacos de vidro no mato que reluzem e queimam folhas secas quando o sol incide sobre eles, poderia falar de infinitas situações envolvendo pequenos pedaços de coisas esquecidas no chão, todos eles incidem sobre o movimento cotidiano da vida. Toda esta materialidade dispersa, ao fim, incide sobre outras modificando-as constantemente.

Partindo desta perspectiva como uma possibilidade entre inúmeras outras, a artista compõe estes trabalhos criando um espaço de escuta sensível para os pequenos e aparentemente mudos vestígios das transformações ruidosas do espaço ao nosso redor. Cecília Lima exercita a linguagem tentando equilibrar partes assimétricas que parecem impossíveis de manterem-se de pé, re-criando situações de contraste em que a descoberta de um brilho no escuro se dá ativando nosso espanto, evidenciando ações invisibilizadas no espaço cotidiano, mostrando-nos a transparência ou opacidade de algumas pedras quando atravessadas pela luz, e por vezes, alinhando elementos de uma possível memória infantil do jogo e brincadeiras com as coisas que se oferecem às nossas mãos ao acaso.

Sua obra nos sugere uma possível experiência de integração na assimetria e no aparente desequilíbrio, propõe uma reordenação de sistemas a partir das partes sem todo. A parte nos lembra o todo, mas seus trabalhos nos propõem outra perspectiva para perceber o espaço constituído por muitas outras partes que buscam ritmos compositivos próprios, silenciosos e vibrantes, que agora dançam, mesmo que pareça que virão ao chão.

no fundo de cada coisa
o raso
no vasto de cada coisa
o ínfimo
no descampado o íntimo   na nudez
um nem atinar com ela
no reles de cada coisa
o tudo dela

Poema Rés do chão. Adriana Lisboa em O vivo

1    Cecília Lima. Vacilantes, 2020. Instalação em madeira. Dimensões 30 cm x 360 cm x 15 cm.

2    A Nave arte | projeto | pesquisa foi um espaço autônomo de formação, pesquisa e projetos de arte que existiu em Brasília de 2015 a 2019, gerido por Yana Tamayo e Dani Estrella. Os Laboratórios de Processo Criativo eram coordenados por mim e tratavam-se de uma proposição de acompanhamento crítico e experimentação coletiva em artes visuais. Ao fim de cada processo, realizávamos uma exposição com os trabalhos dos artistas. Foram realizadas quatro edições, uma por ano.

3    Cosmografias, 2016–2018, é uma série de monotipias realizadas pela artista a partir de calçadas na cidade de Taguatinga, DF. Numa analogia a este conceito da Astronomia que se ocupa de descrever o Universo, as monotipias que decalcam as rachaduras, linhas e manchas das calçadas, seriam, segundo a própria artista escreve em seu trabalho de conclusão de curso “os caminhos de um microcosmo, uma constelação tão próxima e quase invisível, desenho que é uma anotação sobre o espaço”. In RODRIGUES, Cecília Lima. Fragmentos: anotações sobre o espaço. Trabalho de conclusão do curso de Artes Visuais da Universidade de Brasília. Brasília, 2021, 124p.

4    Em seu livro Vibrant Matter, Jane Bennett discorre sobre esta possibilidade trazendo uma dimensão política e filosófica sobre nossa relação com a matéria inerte ao longo da História e do desenvolvimento dos campos de conhecimento. In BENNET, Jane. Vibrant matter: a political ecology of things. Duke University Press: Durham and London, 2010.

Âncora 2

COSMOGRAFIAS
Clarissa Diniz, 2021

Cosmografias, a exposição, toma de empréstimo o título de uma obra de Cecília Lima. Apesar das semelhanças entre as negras manchas informes de sua série de monotipias (2016-18) e as imagens que conhecemos de nossa galáxia, o trabalho da artista brasiliense não é somente uma evocação visual do universo. Seu gesto — o de, sobre uma folha de papel jornal, gravar o asfalto de Brasília em tinta guache — é, antes, uma ação de impregnação. Ao inscrever o cosmos não em sua suposta excepcionalidade, mas a partir de algo que nos é tão prosaico quanto o asfalto, Cecília enuncia saber-se parte dos movimentos do universo que cotidianamente nos constituem.

Como artista, ela não se filia, portanto, às fantasias de uma criação ex nihilo, surgida do nada, mas se imiscui no que já existe, por entre as forças e as imagens que já estão postas: seu trabalho é uma ação que se distribui por entre o asfalto, o tempo, a umidade, o peso, o desgaste da matéria, o calor, as fissuras, dentre tantas outras agências. Distante da ambição demiurga da arte, pouco interessa a Lima uma ficcional remodelagem das dinâmicas e materialidades do cosmos, o que performaria a centralidade Todo-poderosa que historicamente temos fabulado como lugar cativo dos deuses, dos heróis e, por vezes, dos artistas.

Como quem explora o avesso dessa ambição, os gestos de Cecília têm sido, muitas vezes, o de mover-se não em sentido autônomo, senão em consonância, acompanhando e reagindo — não sem atrito — aos movimentos que podemos tomar, em alguma medida, como cósmicos. Intenção que habita também as Cartas celestes (2001) e a série Cromossons (1994) de Montez Magno e que, mais recentemente, levou à série de desenhos (2021) que Cecília Lima tem realizado de dentro de um carro em deslocamento, cujo sacolejo se torna o ritmo de seu exercício de retratística vacilante: o de desenhar, em movimento, os muitos caminhões que cruzam o seu percurso.

Estamos, assim, diante de um singular território ético para a prática artística que, nesta exposição, está habitado não apenas por Cecília, como também por outras artistas da Galeria Index: Ludmilla Alves e Capra Maia. Juntas — e, na mostra, permeadas por obras de outros artistas, oriundas do acervo da galeria —, elas nos advertem que não estão interessadas em falocentricamente instituir suas poéticas, desejos e arbítrios estético-políticos sobre o mundo, nem mesmo a contrapelo deste.

Talvez mais do que criar ou disparar formas, dispõem-se a integrar as formatividades que, por estarem há muito em curso, extrapolam suas posições de sujeito e suas noções de historicidade: se dão para além do corpo e do espaço-tempo das artistas. Nesse sentido, Ludmilla, Capra e Cecília se interessam por processos de (trans)formação que, por estarem distribuídos entre tantas agências, tornam pouco produtivo afirmar a soberania de um estado da forma em detrimento de sua própria e plural formação.

Em torno desse horizonte ético-estético, Capra Maia convoca, por exemplo, o tempo — este que é também evocado, em Cosmografias, pelas obras de Ludmilla Alves, Manoel Constantino e Manuel Messais. Voraz, sua radical impermanência pinta junto com Capra, que conta com o envelhecimento e com a deterioração enquanto formatividade. Seu ateliê é, por isso, propositadamente aberto à umidade e ao calor. À Capra interessam a poeira, a sujeira, a ferrugem, o que sobra da construção civil: o pensamento pictórico que vem com o vento e que se assenta sobre uma tela à espera da ação do desconhecido.

Como indicam as pinturas Entrópica I, II, III e IV (2016), a ideia de entropia tem sido cara a Maia, como outrora foi encarada como força compositiva pelo cearense Antônio Bandeira, cuja cósmica pintura de 1962 dialoga, nesta exposição, com a obra de Capra. Em 2021, a artista brasiliense tem desdobrado seu fascínio por aquilo que escapa ao controle, à ordem ou à previsibilidade para além da agência das próprias matérias ou dos fenômenos ambientais para incluir também a ação da alteridade, seja ela humana ou animal.

Saturno: sempre faminto (2021), uma série de pinturas devoradas pelos cães da artista, sustenta ético-esteticamente que destruir, na medida em que transforma, também é um modo de criar. Destroçadas e, por isso, redesenhadas em suas bordas, em suas manchas e em seus volumes não pela artista, mas pelas mordidas e solavancos de suas crias caninas, essas pinturas plasmadas por seu próprio arruinamento suscitaram o desejo de convocar também outra ação de desgaste para seu processo pictórico: o peso dos corpos em movimento, fenômeno estudado também Lucio Fontana em desenho de 1953 que integra a mostra.

Assim, especialmente pensada para o espaço da Galeria Index, uma pintura de chão ocupa o centro da exposição Cosmografias como um território; obra a ser percorrida, habitada. Como um convite aberto às “trilhas do desejo” — traçados que emergem nos vastos campos verdes da capital federal que, desobedecendo à ortogonalidade de seu desenho urbanístico, indicam caminhos inventados por seus pedestres no uso da cidade planejada —, a pintura sabe-se inacabada. Mais: compreende que seu desenho é inseparável do desgaste da matéria nela inicialmente depositada, elegendo não a conservação, mas a transformação como seu horizonte ético-estético.

Memórias do fogo (série de golpes) (2018), de Ludmilla Alves, igualmente invoca uma construção coletiva. Instalado desde o teto, um grande pedaço de carvão forma um pêndulo sobre a parede, reagindo ao ambiente, movendo-se de acordo com o trepidar do espaço e, fundamentalmente, pela ação de nossas mãos, corpos, forças. Já havendo sido instalada no espaço público (versão intitulada Carta aberta (2015), a obra é um dispositivo que incita a elaboração de enunciados, de sentidos e de usos que possam imprevistamente negociar suas diferenças e perspectivas.

De proporções atípicas, o pesado carvão demanda esforço e produz atrito para inscrever sobre a parede, maculando-a. Como em outros trabalhos nos quais Ludmilla explora a queima, os destroços ou as ranhuras, Memórias do fogo não salvaguarda os espaços lisos e brancos das utopias democráticas que tomam por certos os lugares de fala. Ao contrário, nos põe a experimentar as vozes, as escritas e as imagens coletivamente produzidas num contínuo exercício de agir com outras materialidades e corporeidades num processo de ocupação de espaços que pode ser, também, o de uma disputa por protagonismos que evocam memórias e especulações incendiárias.

Assim, a obra e o pensamento pictórico da artista se fazem por meio de um repertório de gestos que não obliteram a violência que lhes dá forma. Golpes, inversões, impressões, incisões são alguns dos verbos que, orbitando o universo estético de Ludmilla Alves, apontam para a dimensão política de seus modos de compor, dando a ver que, em sua obra, também as materialidades (re)agem e, assim, performam sua alteridade.

É o que provoca a série Nômade (2018), uma “prática de longa duração em pintura” com materialidades como argila, pedras, torrões e madeiras queimadas, muitas delas colecionadas pela artista durante caminhadas no cerrado. Se a ação de Ludmilla é mandatária no momento da extração e do deslocamento inicialmente engendrado pelo trabalho, nos arranjos subsequentes — as pinturas —, é o movimento precipitado acidentalmente nas tramas entre as materialidades, seus contextos de exibição e os corpos neles implicados que vão ininterruptamente formando a pintura. Nômade, portanto, é o próprio centro gravitacional do processo pictórico, instituído de modo a mover-se e a vulnerabilizar-se junto às muitas agências do mundo.

Assim, como revela a série Vacilantes (2020), de Cecília Lima, a instabilidade das formas é um processo criador. Aliadas ao tempo e à sua impermanência, movendo-se junto a outras forças, em desequilíbrio e dispostas a não se preservar, as obras de Capra, Alves e Cecília reunidas em Cosmografias sublinham a formação como estado/trabalho contínuo, transformando-se.

Ao propor e inventarem modos de distribuir as agências que tradicionalmente conformam as obras para além da vontade e dos gestos criadores de seus autores, as artistas aqui reunidas fazem, da arte — e, inextricavelmente, da vida —, “uma dança cósmica”, como nas palavras de Ailton Krenak. Cosmografando suas existências e transformações, têm buscado sustentar, desde suas poéticas e em meio a esse que é um dos mais duros momentos de nossa história recente, “a coragem de ser radicalmente vivas” (AK).

Âncora 3

CECÍLIA LIMA
Jadson Rocha, 2019

há muita coragem em quem não é a favor de ser poupada, o trabalho feito corpo, trabalho a partir do corpo, o trabalho como corpo no mundo, o trabalho impondo sobre o próprio corpo o peso de sua presença teimosa: fricção corpo-trabalho-mundo, persistente como uma formiga carregando a noite consigo, numa obsessão. sobre trabalho de formigas, vaivém, coleta dali, coleta de lá. corpo formiga: movimento sobre linha definida, com intenção de sobrevivência, carregando, na mesma viagem, em tantas viagens iguais, uma multiplicação de si. corpo cecília: movimento em deriva, mas consciente, carregando fragmentos de mundo que se expandem ao gesto do toque, ao olhar atento, à nova ordenação das formas (pequena coleção de amores), carregando, em muitas viagens, uma multiplicação do mundo.

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